Militares podem fazer críticas públicas? O conflito entre hierarquia e liberdade de expressão
Artigo do Código Penal Militar proíbe crítica
pública a superiores e a resoluções do governo. Ação pede que dispositivo seja
considerado inconstitucional.
2017. Sala de inquérito policial militar do comando
da PM do Rio de Janeiro. O coronel da reserva Robson Rodrigues, ex-comandante
das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), é investigado por fazer críticas em
entrevistas à imprensa sobre a política de segurança pública no estado. Após
responder de forma afirmativa à pergunta de outro militar sobre se realmente
tinha dito o que estava escrito em um jornal, segue uma nova questão: “E disse
autorizado por quem?”. “Pelo artigo 5º da Constituição, que protege a liberdade
de expressão”, respondeu.
Nunca foi
tão importante estar bem informado.Sua assinatura financia o bom jornalismo.
Legislação: entenda o que está escrito na lei.
O caso ainda segue na Justiça Militar,
mas ilustra bem qual é o drama exposto no pedido enviado ao Supremo Tribunal
Federal (STF) pelo Partido Social Liberal (PSL), em agosto desse ano. O partido
solicita que seja considerado inconstitucional o artigo 166 do Código Penal Militar (CPM),
que impede aos militares criticar publicamente resolução do governo ou ato de
superior em assunto atinente à disciplina militar, sob pena de detenção de dois
meses a um ano.
Como a
Constituição Federal (CF) é de 1988 e o CPM de 1969, o partido enxerga um
conflito de normas já que o artigo 5º da CF garante, nos incisos IV, IX e XIV,
a liberdade de expressão, o acesso à informação e sigilo de fonte; e no artigo
220, a manifestação livre do pensamento. Por meio da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) 475, o PSL pede que o STF declare o artigo 166
inconstitucional com urgência já que “inúmeros militares estão sendo
indiciados”, e cita o caso de “militares mineiros que estão sendo perseguidos
por exporem opiniões sobre o parcelamento de seus salários”, em redes sociais,
e também por “comentarem que o governador (...) está sendo investigado pelo
STJ”.
“Por qual motivo poderia um médico falar sobre
saúde, um engenheiro ambiental falar sobre meio ambiente e um policial não
poder falar sobre segurança pública?”
PARTIDO SOCIAL LIBERAL Petição inicial da ADPF 475
O partido afirmou ainda que a norma militar é um
resquício das atitudes arbitrárias do regime militar, que não se encaixariam no
modelo de Estado Democrático de Direito. “Por qual motivo poderia um médico
falar sobre saúde, um engenheiro ambiental falar sobre meio ambiente e um
policial não poder falar sobre segurança pública?”, perguntam os autores da
ADPF.
Defesa
Em defesa das Forças Armadas, a Advocacia-Geral da
União (AGU) lembrou os motivos pelos quais os militares têm um Código Penal
próprio e o consenso de que a liberdade de expressão não é absoluta.
O Código
Penal comum existe para proteger bens jurídicos previstos na Constituição que
são considerados essenciais para a convivência em sociedade.
No caso
das Forças Armadas, segundo a AGU, existiriam outros bens relacionados ao bom
andamento da sua atividade específica que foram protegidos de propósito pela
Constituição, como os da hierarquia e da disciplina, citados no artigo 142 da
Carta Magna. Os militares realizam atos próprios e diferentes da vida civil e,
por isso, o constituinte previu que uma norma especial é necessária, como
ocorre com outras instituições.
Nesse
cenário, o artigo 166 do Código Penal Militar faria parte dos dispositivos que
protegeriam esses bens específicos da corporação militar, o funcionamento da
instituição, não pessoas determinadas, já que manifestações públicas incontidas
de militares poderiam gerar danos às Forças Armadas.
Por
último, como outros direitos da Constituição, a AGU insistiu que a liberdade de
expressão não é absoluta, já que está sujeita “ao influxo dos limites
necessários à preservação dos demais preceitos fundamentais igualmente
consagrados pela Carta Magna”. Para a AGU, cada caso é um caso e deve ser
analisado de acordo com suas circunstâncias. “As tensões entre direitos dessa
natureza devem ser superadas a partir dos elementos do caso concreto, mediante
a aplicação de princípios de hermenêutica constitucional, tais como a
razoabilidade e a ponderação de valores”, defendeu.
“Eu entendo críticas de quem não conhece como
funciona a estrutura militar, mas em minha opinião o Código, com seus artigos,
e não é apenas o 166 que é polêmico, protege um canal de comando que é
necessário em situações extremas, também em tempos de paz”
CÍCERO ROBSON COIMBRA
NEVES Promotor
de Justiça Militar e autor dos livros “Manual de Direito Processual Penal
Militar” e “Manual de Direito Penal Militar”
A sociedade ainda quer defender os direitos da
hierarquia e da disciplina militar?
Se artigos polêmicos do Código Penal Militar, como
o 166, existem para proteger não pessoas específicas, mas a autoridade e
disciplina da corporação militar, considerados bens jurídicos militares pela
Constituição, o que se pergunta é por que esses dois conceitos são tão
importantes e se a sociedade brasileira apoia que continuem a ser tutelados.
A
resposta do autor de dois livros fundamentais sobre o tema, Cícero Robson
Coimbra Neves, promotor de Justiça Militar, está fundamentada na função
principal da atividade militar. Partindo da premissa que as Forças Armadas
(Exército, Marinha e Aeronáutica), as Polícias Militares e os Corpos de
Bombeiro Militares atuam em missões de garantia de segurança pública, em tempos
de paz e de guerra, comprometer de alguma forma a adesão dos militares à
hierarquia e à disciplina pode prejudicar o sucesso de suas funções específicas
e, por tabela, a sociedade.
“No caso
do artigo 166, não se pode entender como uma censura prévia e nem como a
impossibilidade de representar ou criticar o superior em ato censurável”,
explica o autor do “Manual de Direito Processual Penal Militar” e do “Manual de
Direito Penal Militar”. O fato de ser uma lei do período do regime militar não
significa necessariamente que seja algo prejudicial para a democracia, ainda
que precise de ajustes. “É o mesmo que dizer que nenhuma lei presta a não ser
as que surgiram depois de 1988, o que não é verdade”.
O
promotor afirma que se um superior comete um ato ilegal ou incorreto, existem
outros meios de atacar esse ato, que não pela censura pública. O instrumento
jurídico da “representação”, por exemplo, permite a um subordinado questionar
um superior a instâncias mais altas.
Para ele,
fazer crítica pública à corporação, por meio de um denuncismo mal entendido,
pode trazer um trauma à instituição militar que tenha consequências para a
sociedade. “Eu entendo críticas de quem não conhece como funciona a estrutura
militar, mas em minha opinião o Código, com seus artigos, e não é apenas o 166
que é polêmico, protege um canal de comando que é necessário em situações
extremas, também em tempos de paz”, diz Neves.
“Vamos
supor que um superior pratique um crime militar contra um subordinado. Qualquer
militar, pelo artigo 33 do Código Processo Penal Militar, pode trazer esse fato
ao Ministério Público que vai avaliar se há indício de crime ou até outro ato
ilegal como a improbidade administrativa, adotar a medida correta, adequada ao
caso, aquilo pode se tornar um processo e o superior pode ser condenado por um
crime”, frisa.
“É muito arbitrário retirar o direito à crítica ao
governo ou considerar como violação grave uma crítica a um superior, tendo
claro que a jurisprudência constitucional tende a limitar o menos possível a
liberdade de expressão”
MARION BACHAdvogada criminal, pesquisadora e
doutoranda em Ciências Criminais
A advogada Marion Bach, pesquisadora e doutoranda
em Ciências Criminais, concorda que a liberdade de expressão não é absoluta,
mas acredita ser desnecessário existir um dispositivo no Código Penal Militar
que proíba criticar publicamente resoluções do governo e os superiores
militares. “É muito arbitrário retirar o direito à crítica ao governo ou
considerar como violação grave uma crítica a um superior, tendo claro que a
jurisprudência constitucional tende a limitar o menos possível a liberdade de
expressão”, declara.
Para ela,
outros dispositivos na lei são suficientes para os possíveis abusos dessa
liberdade de manifestação do pensamento. “Outras normas protegem, por exemplo,
o sigilo das informações ou penalizam os crimes contra a honra, não é preciso
dizer de antemão que está proibido qualquer tipo de crítica”, continua.
O coronel
da reserva Robson Rodrigues, incriminado no inquérito, e que também é bacharel
em Direito, mestre em Antropologia e doutorando em Ciências Sociais, acredita
que o artigo 166 impede a transparência nas ações militares que, para ele,
seriam necessárias para serem legitimadas pela população. “Não vejo outro
caminho que uma abertura ao diálogo, com os integrantes da própria instituição,
que precisa ser modernizada. Acredito que a falta de comunicação é a pior
estratégia, pois gera espaço para especulações, o que acaba sendo bem pior para
a corporação”, finaliza.
A ADPF
475 tem o ministro Dias Toffoli como relator no STF, sem data para apresentação
do voto e julgamento.
*** Entenda o que está escrito na lei:
Constituição Federal
Art. 5º (...)
IV - é
livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é
livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;
Art. 220. A manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo
ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição.
Código
Penal Militar
Publicação ou crítica indevida
Art. 166. Publicar o militar ou
assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente
ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer
resolução do Governo:
Pena
- detenção, de dois meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Fonte.
Gazeta do Povo.

Comentários
Postar um comentário
POST AQUI SUA OPINIÃO, AGRADEÇO SUA PARTICIPAÇÃO.